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do outro lado

Por Bruna Lobo *

 

“Tudo é do outro lado”

Fernando Pessoa, 1933

   O momento pandémico pede simplicidade. Chega de conceitos inexplicáveis, enigmáticos e até mesmo esotéricos, deixemos essas incompreensões para o coronavírus e todas aquelas palavras difíceis. A exposição “do outro lado” é simples. É aquela nossa esperança de encontrar tudo aquilo com que sonhamos do outro lado, como nos lembra o verso de Fernando Pessoa acima. Sabendo desse nosso humano e inocente fascínio pelo outro lado, a comunicação por meio do outdoor coloca aquilo que está distante, próximo do nosso olhar curioso pelo que só pode existir do outro lado.

     A abrupta condição de clausura imposta pela pandemia encerrou as galerias. Restam-nos as artes públicas. Seguindo esse pensamento e contornando o (incontornável) tema sobre coronavírus e todas as suas variáveis, a Art Dispersion convidou doze artistas visuais para explorarem as suas individualidades em outdoors, fora das paredes das galerias ou dos museus.

      A peculiaridade do suporte instiga para a percepção ativa ou passiva dos transeuntes. Como uma das primeiras formas de divulgação, o outdoor resiste, apesar de todos os avanços tecnológicos. Os painéis que se impõem sobre as paisagens naturais e urbanas da cidade de Lisboa, que antes serviam para atrair consumidores, agora despertam os espectadores e críticos das obras de arte que existem em nós, através da exposição colectiva “do outro lado”. Do outro lado do passeio, da janela de casa ou do carro recebemos as maneiras individualizadas de observar e transcrever a realidade através de um olhar íntimo daqueles que rompem paradigmas ao provocar a nossa ótica. 

    O deslocamento da arte da galeria para o outdoor é uma audácia que contribui para a conversão momentânea dos transeuntes em apreciadores de arte, comprometidos unicamente com o sentir daquilo que está tão próximo, “do outro lado”.

     O “Museu em Montagem” de Rodrigo Bettencourt da Câmara expõe a nostalgia dos bastidores da produção artística. A imagem sobrecarregada de objetos e de movimento informam-nos sobre o esforço humano em produzir os espaços das artes.

     A saída da galeria para o espaço aberto, remetem para as relações entre o homem e a natureza. A natureza ao longo dos anos já foi tão redefinida que o seu conceito se tornou plural. Sentimos essa evolução a partir de Filipe Branquinho que, em “Neblina”, reinfunde as paisagens dos românticos através da natureza em sua totalidade. Sabemos que qualquer atividade humana tem impacto sobre o meio ambiente. Isso nós percebemos na imagem de Bruno Veiga que nos mostra como os elementos construídos pelo homem, para tornar a vida mais confortável, tomam a paisagem e como duas espécies vegetais estão dominadas.

     A imagem de um ramo vegetal florido, mas preso num herbário e meticulosamente dominado, pela artista Teresa Palma Rodrigues em “Corriola (Convolvulus)”, lembra-nos da nossa necessidade de nos apoderarmos da natureza. Contudo em “The runners”, do argentino Alberto Natan, a perspetiva do olhar tímido por entre os galhos das árvores das pessoas na rua, podem ser as grades da natureza na qual estamos subordinados. Esse é um dos conceitos de uma natureza separada do homem contemporâneo que vive em profundas dicotomias.

   Por seu turno, em “Concierto para el Bioceno” de Eugenio Ampudia, mais de 2292 plantas ocupam o lugar dos espectadores no El Liceu Teatre de Barcelona para assistirem ao concerto da peça “Crisantemi”, de Giacomo Puccini. Essa imagem desenvolve o antigo pensamento do geógrafo Santos (2006), de que não é a natureza que é cega e sim o homem. Mais do que isso, Ampudia mostra que a natureza sente. Isso soma-se ao pensamento anterior, despertado pela “Neblina” de Branquinho, para uma reflexão sobre a necessidade da preservação, do reencontro do homem com o meio ambiente através das infinitas possibilidades do existir humano.

    Esse homem é representado em seu auge em “Selfie Me”, de João Lobo, a imagem do momento de uma selfie, é a relação do homem com suas invenções. Hoje, tirar fotografias é um modo de atestar uma experiência voyeurista. Ainda acreditamos que é a prova incontestável de nossa existência na terra.

    Quão importante é a nossa existência? Essa questão surge-nos ao observamos “Família no enterro”, de Evandro Teixeira. Uma imagem que estremece as nossas bases existenciais. Existência essa que é complexificada pela nossa falta de simplicidade.

     Quando um casal escolhe descansar na areia, lembra-nos do que realmente importa. Assim, Thales Trigo fotografou a cumplicidade e harmonia em “Somos Iguais”, uma imagem simples de um dos sentimentos mais nobres, o amor. Nisso Trigo tem razão: “Somos Iguais”. Encontramos esse mesmo sentimento em “I touched you, you hugged me”, onde é narrado de maneira íntima e sem rodeios as relações humanas que, para Maria Mergulhão, não possuem limites ou complicações, são naturais a todo ser humano.

    Devemos lembrar a luta pela sobrevivência da humanidade. A luta, na imagem de João Miguel Barros, é o desporto; contudo, no atual momento, havemos de reconhecer como sendo a luta pela sobrevivência em tempos de pandemia, o juiz é o vírus que nos obriga a ficar em casa. Mas diferente dos lutadores da fotografia de Barros, a nossa luta é pacífica, quieta, silenciosa e colapsa qualquer conceito relacionado com o movimento. A proibição de circulação obrigou-nos a fecharmos portas.

     O portão trancado, pintado com a bandeira de Portugal, coaduna esse nosso momento. O recorte da fotografia de João Serra é um sincero e modesto retrato do atual estado de uma nação.

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Pessoa, F. (1933). “Contemplo o que não vejo”. In Poesias. Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1942 (15ª ed. 1995), p.171. 

Santos, M. (2006). A Natureza do Espaço: Técnica e Tempo, Razão e Emoção. (4º ed.). São Paulo: EDUSP.

 

Doutoranda em Ciências da Arte e do Património pela Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa (FBAUL), onde é Membro Colaborador do Centro de Investigação e Estudos em Belas-Artes (CIEBA). Mestre em Turismo pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) onde foi Representante Discente do colegiado e bolseira do programa de Docência Assistida REUNI-CAPES. Possui Especialização em Docência Superior e é graduada em Turismo pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Foi docente do curso de Turismo do Instituto Superior da Paraíba (Brasil) e coordenadora de artes da Fundação Espaço Cultural da Paraíba (Brasil). Além da pesquisa científica relacionada com arte e turismo, desde 2002 participa em produções das artes visuais, principalmente fotografia, desde a assistência técnica, elaboração de projetos, até a curadoria de exposições.

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